Tempo de Saudade


No tempo, já se passaram três anos desde que Antônio partiu daquele amor. Foi numa noite do fim de junho, quando o frio ainda fazia tremer os lábios e o céu era estrelado. Mas, no entardecer do dia 29 não foi o vento gelado que assoviava pelas árvores o motivo de seu soluço. No peito, algo lhe dizia que não seriam iguais, nunca mais, os olhares dele e de Raquel. Aquele entrecruzar que bastava para dizer tudo o que sentiam. Partir era seu destino. Partir pra longe, onde o mundo gira mais rápido e o sol não se despede à tarde.

Na área em frente a casa, sentado em seu banquinho de madeira, ele observava o horizonte, como se fosse um leve abandonar da natureza. No cajueiro do quintal alguns pássaros insistiam numa sinfonia desafinada. Tudo inspirava saudade, mesmo antes do adeus. Alguns minutos depois Raquel apareceria, meio tímida, como se quisesse fazer seu último pedido. Não o faria. Ficaram os dois sentados no banquinho a olhar pro alto, a planejar um futuro distante, quando se encontrariam de novo.

Antônio, com seus 17 anos, precisava ir. A capital lhe esperava para os estudos e a formação. Raquel, em sua pureza de 15 anos, também queria seguir estrada afora, acompanhar seu amado. Mas não era tão simples assim. Ela ficaria, com lágrimas nos olhos, a esperar sempre um sinal de regresso. Ele, ainda choraria em seu novo quarto muitas tristezas. O amor muda de cor com os verões.

Na noite do dia 29, Raquel o acompanhou até a rodoviária. Levou uma bolsa, como se nela depositasse todo o seu desejo de não passar o tempo. Caminharam devagar, passos contados na areia da calçada. Depois, um pouco ainda de espera no terminal, onde o ônibus finalmente os separaria. Pelo vidro da janela ele conseguiu ver Raquel, menina formosa de cabelos soltos e olhar ingênuo. Deu um aperto no peito e uma vontade de chorar. Antônio não chorava em público. Sempre que suas lágrimas o sacudiam ele se escondia em algum canto. Mas, naquele momento, não teve como fugir. Chorou em silêncio e deixou que se umedecesse seu rosto, pra lembrar que um dia amou demais.

A madrugada chegou ainda na estrada. Antônio não dormira nada. Tinha ficado a olhar pelo caminho cada árvore, cada estrela perdida naquela escuridão. Foram 500 quilômetros até o sol aparecer por trás das montanhas. O mundo parecia diferente por aquela região. Era mais triste. Ou seria sua tristeza que a tudo inundava? Não sabia ao certo, mas algo era diferente. Pouco mais de 100 quilômetros e ele estaria finalmente em sua nova casa. Lugar onde passaria os próximos dias, meses, anos. A lembrança de Raquel o acompanharia. Porém, novos verões viriam lhe roubar a cor dos sonhos e fazer perder todo o encanto. Ainda restaria, na saudade, uma vontade de amar de um jeito puro. Apenas na saudade. Pois, breve Antônio se formaria homem. Raquel se formaria mulher. Eles não sabem, mas a vida, o tempo e a distância fazem sim os corações se partirem e se juntarem em outros pedaços. Um dia saberão...

Dúvida


As mãos ainda suam frio quando penso em você. A insônia, em noites inteiras de céu claro, insiste em me fazer lembrar teus olhos. Não sei se é amor essas coisas todas que me acometem e tiram a paz de meus sonhos. Não deve ser. Você mesmo disse que não era amor, que era cedo demais para se amar. Depois partiu e eu fiquei com essa dúvida: é amor? Sabe, não entendo muito bem essas loucuras do coração. Acho que acreditei, ou tentei me iludir, que não era nada mesmo. “É só um sentimento passageiro.” Tanto tempo. Tanta dor. Tanto, tanto, tanto, Amor? Ai, como queria ser de pedra. Por um instante só. Pra não pensar em você, pra não olhar pra mim, pra não sonhar com “nós”... Quebra-cabeça que espedaça minha fortaleza. É fraqueza, deve ser. Talvez algum dia isso passe. Talvez consiga me convencer que suas palavras eram reais. Talvez... Não queria mais falar dessas peripécias. Ah!!! Que saco! Tudo bem, não é Amor. Não é, não é, não: é!

Fuga


Eu sempre fujo antes que o Sol venha. Não é covardia, entenda. Isso é apenas meu medo de ver teus olhos e me apaixonar de novo. Ate hoje, não sei de casos contados pela medicina ou pela ciência de reapaixonamentos, mas vai que acontece, assim de repente. Então, não me condene por ter que partir sem dizer adeus, todos os dias. Essa é uma maneira de estar sempre presente, de nunca ter partido de fato. Pois, o regresso é a continuação da presença. Entenda, apenas entenda...

Silêncio (em memória do Carnaval e d'outras festas)


O silêncio se fez presente. Ele queria impor a sua ordem e o seu constrangimento, antes do tumulto. Pois o silêncio, meus caros, às vezes machuca fundo, fere e arranca a casca da ferida, fazendo-a sangrar. Silêncio é coisa assustadora, até mais do que o barulho de um trovão. É aquela insensatez que troca as palavras pela pouca comunicação. Dá medo de ver essa calmaria que se estende por longos segundos e dispara o órgão em nosso peito. É de tremer as mãos e suar os pés. Mas, o silêncio também é paz. Em noites claras de lua cheia, o silêncio da madrugada deve ser sagrado. É momento para se ouvir as estrelas, com seu brilho intenso, a cantarem canções também silenciosas, quando as notas se mostram por inteiras em novas melodias apaixonadas. Quando o barulho se vai, pode-se ouvir o tum-tum, tum-tum que o coração diz. Isso é de uma beleza que assusta. Quero ainda, neste instante, um pouco de silêncio, in memória. Antes que o barulho da festa atormente nosso espírito e, como o silêncio, também não nos deixe falar. E o pior, não nos deixe ouvir, nem sentir, nem amar...

Permanência (O reencontro II)


Ficamos assim, em silêncio, por alguns instantes. Foram poucos segundos, mas aquele vazio de palavras atormentava-me por inteiro. Quis dizer algo que fosse belo, inteligente ou até mesmo bem-humorado. A única coisa que saiu de minha boca foi um breve “oi, tudo bem?”. Mais breve foi tua resposta: “tudo”. Não compreendi esse silêncio. Seria uma forma de resposta ao meu coração, como um “sim, eu te amo”, ou mera expressão de desprezo. Queria recriar nossas esperanças e te contar dos meus planos de futuro, contigo ao meu lado, tipo um “feliz pra sempre”. Saiba que recortei o teu retrato e coloquei na parede, da ilusão. Olho-te todos os dias antes de dormir, pra sonhar um pouco mais. A vida tem dessas situações. Mas, ainda espero por alguma reação de amor...

Sustentabilidade: mais que uma palavra


O discurso da sustentabilidade ganha destaque e se torna estratégico em todos os setores

Por Milson Veloso*

Promover o desenvolvimento humano de forma que as questões econômicas, ambientais, culturais e sociais sejam contempladas é o princípio da sustentabilidade, termo que tem ganhado destaque nos debates sobre os problemas contemporâneos que o mundo enfrenta. O início das discussões acerca do tema aconteceu durante a Conferência de Estocolmo (Suécia), em 1972. Entretanto, apenas no final da década de 80 e início dos anos 90 é que o conceito de desenvolvimento sustentável adquiriu maior abrangência, principalmente após a Conferência Rio-92 (Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), realizada no Rio de Janeiro. No evento, foi aprovada a Agenda 21, um documento que constituiu um pacto para alterar o modelo de desenvolvimento global.

Apesar de já terem se passado mais de 30 anos do primeiro grande debate, alcançar um planeta sustentável ainda é algo que inspira desafios. Para o biólogo e doutor em Ecologia pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), Rogério Parentoni, alguns aspectos são essenciais ao se falar sobre o assunto, principalmente em âmbito nacional. Dentre eles, o especialista destaca a mudança de postura, tanto por parte do setor privado quanto dos governos. “O principal seria mudar o modelo econômico e o sistema político brasileiro, que atualmente são ‘insustentáveis’”, afirma.

O biólogo é pessimista quanto ao futuro, pois considera que o individualismo e a maneira como são tratados os pontos referentes à sustentabilidade, atualmente, representam obstáculos difíceis de serem transpostos. “O comportamento humano predominante é o de pensar em si não como parte de um todo, mas como estratégia para se beneficiar, independentemente dos resultados de suas ações para os demais”.

Já para o professor de Gestão Ambiental da Universidade Católica de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Dr. Marcelo Dutra, a verdadeira riqueza está nos bens e serviços oferecidos pela natureza. Segundo ele, reconhecer e valorizar tais bens é o grande desafio para a sociedade. “Em pouco tempo, as maiores economias serão conhecidas não só pelo que produzem e comercializam, mas, principalmente, pelo que produzem e comercializam daquilo que sabem preservar e/ou conservar. Uma economia de futuro valoriza seus recursos e tem nas suas prioridades a manutenção do capital natural”, defende.

Garantir a manutenção desses recursos, na visão do professor, vai além da conservação da floresta ou de qualquer outro patrimônio. Pois, somente uma economia baseada nessa metodologia permitirá o exercício real das práticas econômicas, com distribuição da renda e a qualidade de vida das pessoas. Para isso, seria necessário pensar e praticar uma economia completamente nova, que leve em consideração as limitações dos bens, planeje o uso do espaço e estabeleça regras e limites, todas essas ações aliadas a um processo de gestão compartilhada.

As mudanças na temperatura, desastres naturais e muitos outros eventos podem simbolizar que algo de errado tem sido feito pelo homem com o meio onde vive, a Terra. Além da poluição provocada pela produção e uso desordenado de automóveis e demais produtos, outro fator para o qual Marcelo Dutra chama a atenção é a ocupação irracional dos espaços, tanto urbano quanto rural. “Devemos trabalhar firmes por uma nova ordem de planejamento, as características do espaço devem ser melhor estudadas e consideradas no momento da ocupação. O sistema de gestão deve ser mais responsável, mais técnico e menos político”. O professor também acredita que os problemas atuais podem ser apenas um aviso do que será o futuro, se as medidas necessárias não forem adotadas. “Talvez ainda se saiba muito pouco quanto às verdadeiras conseqüências dessas mudanças sobre a superfície terrestre“, conclui.

Ecoturismo para um desenvolvimento sustentável


Lazer, esportes radicais e contato com a natureza. O ecoturismo, forma de turismo voltada para a apreciação de ecossistemas naturais, têm crescido significativamente no Brasil e demais países em desenvolvimento. Um artigo publicado no portal Universo Ambiental revela que a prática é responsável por mais de 10% da receita total em 47 países e por mais de 50% do valor de exportações em outros 17 países.

O termo ecoturismo começou a ser utilizado no início dos anos 80 e representa, segundo alguns estudiosos da área, variações como turismo rural, turismo ecológico, turismo alternativo e turismo cultural. Para a turismóloga Érika Dias Cordeiro, especialista em educação ambiental e desenvolvimento sustentável, o ecoturismo não corresponde diretamente apenas ao local onde se realiza a atividade, mas à forma como ela é feita. “O termo está ligado ao fato de se fazer um passeio de maneira consciente, com respeito à cultura local e preservando as áreas naturais”, esclarece.

Por promover o encontro entre diferentes culturas, Érika acredita que o turismo precisa estabelecer nos viajantes a consciência do real valor dos patrimônios para a sociedade e a necessidade de preservá-los. “É neste contexto que o turismo é tido como uma atividade que colabora com o desenvolvimento sustentável do planeta, desde que realizado de maneira planejada, pois busca incentivar o uso sustentado dos atrativos, não permitindo que estes se esgotem”, complementa.

* Milson Veloso é graduado em Comunicação Social - Jornalismo, pelo Centro Universitário Newton Paiva. Esta reportagem foi produzida para o Jornal FUNDAMIG.

Um Mar de Escuridão

A vida, desafios e superações, dos deficientes visuais

Por Milson Veloso*

“Um dia me deitei para dormir e, na manhã seguinte, quando acordei já não enxergava mais nada”. Dessa forma, o relações públicas Ricardo Malta, 44 anos, explica como descobriu a escuridão da cegueira. Em 2003, após oito anos de luta contra um glaucoma, ele mergulhou definitivamente em um mar sem luz. Segundo Ricardo, era como se a noite jamais acabasse. “Bem cedinho, abri os olhos, mas parecia que o dia não tinha chegado.” Como já era de costume, ele ligou o rádio para ouvir músicas, uma de suas paixões, porém o programa havia terminado. “Achei estranho aquilo, então fui até a porta e a abri, na tentativa de ver alguma luz. Continuava tudo escuro. Como teste final eu resolvi acender a lâmpada. Não vi nada. Aí percebi que realmente estava cego”, revela.

Aprender a viver em um universo onde a imagem tem menos importância que o convencional é um desafio para quem perde a visão. O número de pessoas que vivem dessa forma, assim como o Ricardo, tem crescido. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a cegueira afeta aproximadamente 40 milhões de pessoas em todo o mundo e outras 125 milhões têm dificuldades para enxergar. E as expectativas para os próximos anos não são animadoras. A estimativa da OMS aponta que o número de cegos deve dobrar até o ano de 2020.

A cegueira pode se manifestar de várias formas, que são classificadas de acordo com o grau e o tipo de perda da visão, como a visão reduzida, a cegueira parcial (de um olho) ou o Daltonismo (dificuldade de percepção das cores). Contudo, o que preocupa as autoridades e os especialistas da área não é o tipo, mas a maneira como a doença se apresenta. Isso porquê, segundo a OMS, 75% dos casos são tratáveis ou evitáveis. Boa parte dessa porcentagem está relacionada a problemas como a catarata, que só no Brasil já fez cerca de 350 mil vítimas, sendo que 95% destes pacientes poderiam ter sido tratados.

Para o oftalmologista Dr. Ricardo Guimarães, diretor do Hospital de Olhos de Minas Gerais, o motivo de um número tão alto de afetados pela catarata acontece por que “a evolução da doença é lenta e a pessoa vai se acostumando com a perda progressiva da visão”, explica. O médico também afirma que essa situação poderia ser resolvida de forma simples, a começar com “a sensibilização de autoridades da saúde pública para que liberem recursos para o atendimento destes pacientes”.

Mas não são apenas números, são vidas. Vidas como a de Evandro Saito Freimann, 46 anos, professor de matemática para deficientes visuais. Há 16 anos ele não vê o sol, a lua, ou qualquer objeto. Há 16 anos Evandro precisou se redescobrir para continuar vivendo. “Só aceitei mesmo que iria perder a visão no dia em que o médico me disse: ‘não dá para fazer nada, não tem tratamento’”, esclarece. A partir daquele momento, o jovem traçou novas linhas para seguir. Não estava só. A convivência com outros deficientes e o apoio da família foi algo que lhe ajudou. “Não foi fácil. Eu tive que aprender muito, mas, quando falta a visão você aprende a usar os outros sentidos”, diz.

Da mesma forma como Evandro, Ricardo Malta também teve que superar diversos obstáculos. Segundo ele, um dos maiores problemas para os deficientes é encontrar um emprego, pois, “as pessoas não acreditam que o deficiente visual seja capaz de executar determinadas tarefas. Até contratam, mas apenas aqueles que têm deficiência parcial”. Entretanto, nem tudo são barreiras. A cegueira também tem a capacidade de transformar a vida de maneira positiva. “Depois que perdi a visão eu melhorei muito como ser humano”, revela Ricardo.

As mudanças ultrapassam o limite dos olhos de quem perde a visão. A auxiliar-administrativo Tércia Rodrigues Vieira, que trabalha há quase 5 anos no Centro de Capacitação para Deficientes da PUC-Minas, diz que a convivência com os deficientes visuais alterou de forma significativa seu comportamento. “Eu tenho aprendido com o carinho deles, a paciência em lidar com as coisas, mesmo as que aparentam ser difíceis”.

Barreiras, no meio do caminho

Tinha um buraco no meio do caminho. Esse é um fato do qual o professor Evandro Freimann não se esquece. Desde que ficou cego, em 1992, foram muitas as situações pelas quais passou, mas uma em especial lhe deixou marcas. “Certo dia caminhava pelas ruas de Belo Horizonte e, de repente, caí em um buraco”. O acidente aconteceu, segundo Evandro, devido a uma alteração no nivelamento da calçada que dava acesso à sua casa. O fato lhe rendeu, além do tombo e das dores, uma fratura no tornozelo.

Os empecilhos arquitetônicos são apenas algumas das muitas barreiras enfrentadas diariamente pelos deficientes visuais na capital mineira. Nesse sentido, ainda é possível citar a dificuldade para atravessar as ruas e utilizar o transporte público. Edwirges Maria da Silva, 34 anos, vendedora de bilhetes da loteria e cega desde os 16, reclama que o verdadeiro problema está na falta de solidariedade das pessoas. “Muitas vezes, elas trombam na gente, empurram e não estão nem aí. Quando alguém resolve ajudar, segura no braço com força ou com nojo, como se a doença fosse contagiosa”. Para o relações públicas Ricardo Malta, as pessoas são solidárias até demais. “O problema é que, a maioria delas, não sabe lidar com o deficiente visual”.

Questionada pela reportagem da Revista Ágora, a respeito dos obstáculos nos “caminhos dos cegos”, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, por meio da Secretaria de Políticas Urbanas, afirma que, apesar de a questão da acessibilidade ainda ser um assunto novo em discussão, “todas as obras de qualificação dos espaços urbanos contemplam as necessidades dos deficientes”. Ainda de acordo com a PBH, na região central da cidade já foram instaladas faixas livres em algumas ruas, pisos específicos para cegos nas calçadas, além de rampas e elevadores nos prédios públicos. Contudo, a instituição reconhece que a situação deve levar um bom tempo para ser resolvida completamente, pois “as ações precisam ser feitas gradativamente”.

Amor além da imagem

Já disse o escritor Luiz de Camões que o “amor é fogo que arde sem se ver”. Para a vendedora Edwirges da Silva, 34 anos, assim como o sentimento é algo que não se pode visualizar, também não é necessário enxergar para amar alguém. Ela namora há três anos outro deficiente visual e diz que o relacionamento é “normal”. “A gente beija, a gente ‘fica’, como qualquer pessoa”. Edwirges até faz planos para se casar e ter filhos. ”Não há nada que me impeça de fazer isso”, argumenta.

O professor Evandro Saito Freimann, 46 anos e cego há 16, garante que o amor entre duas pessoas cegas é mais do que normal, “é especial, pois a gente não se preocupa tanto com a imagem exterior. O que vale mesmo são os toques, a conversa, as carícias”, explica.

* Milson Veloso é graduado em Comunicação Social - Jornalismo, pelo Centro Universitário Newton Paiva. Este texto foi produzido no final de 2008 para a disciplina de Jornalismo Impresso II - Revista.

Oscilação

Meu amor,
Não sonhe tão alto,
Para não despertar os fantasmas,
Que dormem escondidos debaixo da cama.

Meu amor,
Não viva tão baixo,
Para não adormecer,
Sem ao menos ser notada.

Meu amor,
Siga sempre assim,
Nesta constante oscilação,
Que te lavará até o fim.

Existência


"A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias." Vinícius de Moraes

Caminhava lentamente como se não quisesse chegar em casa. Na verdade, não queria mesmo. Meu desejo era ficar a vida inteira a caminhar pelas estradas. Aquilo era fantástico. Poder pisar nos pedregulhos e deslizar os pés sobre a areia quente. Um misto de dor e prazer. Mas, valia a pena. A estrada me levava sempre onde eu queria: o lugar comum – qualquer destino. Compensava seguir descalço e sentir os grãos se esconderem entre os dedos. Fantasiar castelos e viajar nas nuvens de algodão. Tudo isso pertencia à grandeza da criança que ainda não saiu de mim.

O vento sempre soprava mais forte nas tardes de agosto. Era gostoso sentir os cabelos se bagunçarem e a poeira levantar. Uma confusão só, aquela briga da natureza. O vento, a poeira, as árvores. Pareciam até crianças a brincar, desafiando seus medos. Bonito de se ver, de se viver. Gostava de correr contra o vento, fechar os olhos e me imaginar a voar, como os pássaros lá do céu. O céu tão azul, que beleza. Amar, tão simples, uma sutileza. Porém, o que mais me comovia era mesmo a estrada. Porque, por ela iam e vinham sempre todas as pessoas. A cavalo, a pé, na carroça. A transitoriedade do caminho tem uma liberdade infinita, sem austeridade.

Sem nada pra pensar e o mundo inteiro pela frente. Dava até pra sentir o cheiro que vinha das folhas e flores de Araçá. Tão puro de existir. Quase melódica a composição que a ventania preparava entre os galhos. Escutava e não entendia. Mas o ouvir bastava para crer. No meio de toda a sinfonia daquele lugar, eu me sentia uma nota musical. Bom pertencer ao espetáculo que se formava e se reformulava em cada nova sensação. A emoção do espaço que não carece de preocupação com o tempo. Ah, o tempo. Este mais tarde se mostra e leva tudo. Só fica a lembrança e essa vontade de continuar na estrada, a espreita de quem passa.

Alquimia da infância que transforma em ouro todas as nossas vontades. Nada mais feliz que estar ao lado do mundo. Livre. Sem as amarras que a idade traz. A vida deveria acontecer permanentemente aos quatro, cinco, seis anos, no máximo. Essa arte impressa nos olhos como uma forma de enxergar as coisas. Inocência de se apaixonar. Nada que inclua preocupação e dor de cabeça. Seria melhor. Poder observar as labaredas que saem do chão quente, como se a terra estivesse a cozinhar com o verão. Correr bastante, suar e sentir calor para ter o prazer de beber um pouco d’água no chafariz. Molhar o rosto, a alma. Os sabores eram mais fortes e mais intensos. Época de escutar os pássaros e pular na cachoeira. De banhar no rio e na chuva. Época de caminhar na pequena trilha da praia. Só por caminhar. Os nossos passos nos levam pela vida. Essa alegria é triste, apesar de toda aquela felicidade...


Caracol


Enrolada,

Lado-a-lado,

Com cada estado,

De permanência,

Inconstante.

Rolar,

Ladeira abaixo,

E até mesmo alcançar,

Outros instantes,

De incandescência.

Caracolizar,

O sol depois da lua,

E dizer que foi só sua,

Perdida na noite indecente,

Notadamente nua.

ALEGRIA: Sobre a Comédia da Vida e Outras Desgraças


“Se não levarmos a poesia e a beleza conosco, é inútil percorrermos o mundo. Em nenhum lugar as encontraremos.” Ralph Waldo Emerson

Em resposta a quem diz de minha melancolia poética, resolvi escrever algo sobre a Alegria. Saibam, Senhores e Senhoras: Poetas, assim mesmo com a primeira letra maiúscula, são alegres na essência, não nas palavras. Nossa felicidade não precisa de outdoor ou jingle vibrantes para transparecer-se. Quiçá, se dependesse de opiniões alheias para ser escrita não seria de todo uma Alegria. O que nós temos no peito, na mente, nos sonhos, é Poesia. O riso é fruto de uma vida, não é algo para ser colocado no papel. Se fosse, deixaríamos de ser poetas para sermos humoristas, palhaços ou animadores - com todo o meu respeito a tais ocupações. Assim, digo mais, não procure nos textos dos poetas motivos para tornar sua vida feliz. Isso deve vir de dentro, não buscado em rabiscos alheios. Se queres isso, consulte seu analista (o caso deve ser sério), não a minha poesia. Falo ainda algo que pode te constranger: sua infelicidade me co-move a escrever ainda mais e a ser feliz, rindo à toa debaixo da chuva por suas desgraças. Pronto. Agora, atire a pedra.

Crônica do Cotidiano



ESTE TEXTO TAMBÉM FOI PUBLICADO NO SITE JORNALIRISMO

Franzino, quase esquelético, com os cabelos ralos amarelo-avermelhados a cobrir lhe parte do rosto, Joel corria pelo terreiro do quintal que o pai comprara fazia apenas dois meses. Quintal pequeno, de metros medidos para caber a casinha, com dois quartos e uma sala-cozinha. Nem banheiro havia por ali. As necessidades mais urgentes eram feitas no buraco de um cercadinho de lona, no canto do terreno. Mas dessas coisas de pobreza ele não sabia, apesar de sentir fome e solidão em seu mundinho incompleto. Três anos faziam desde que viera ao mundo, por arte da natureza, já que a mãe morrera durante o parto. Joel foi amamentado por poucos meses - que poderiam ser contados nos dedos de uma das mãos - por uma tia-parente-distante conhecida do pai.

Joel ainda não falava, embora a idade avançasse. Sabia apenas rir e chorar. É que ninguém lhe ensinou essa arte. Nem o pai, que após a morte da mãe tinha ficado daquele jeito, meio confuso das idéias (que nunca foram muito boas). Trabalhava o dia inteiro pra se distrair e pra colocar um pouco de comida nas panelas, velhas e encarvoadas pelo fogão a lenha do canto da sala-cozinha. O garotinho também não sabia dessas coisas de gente grande, do nascer e morrer, com um tempo entre as duas ações que se chama viver. Ele queria mesmo era pegar as nuvens lá do alto, de tão macias em sua exibição matinal.

Durante todos esses dias, o pequeno - de braços finos e pernas fracas - ficava em casa com a irmã, única companhia de brincadeiras, mas meia dúzia de anos mais velha. Joice era calada, talvez porquê nunca aprendera mesmo muitas palavras. Aos nove anos de idade não tinha ido à escola pra aprender os modos da cidade, pois precisava cuidar do irmão pro pai trabalhar. Também não sentia falta dos estudos. O que ela sentia falta era da mãe, carinhosa, um pouco bonita, que sempre contava histórias quando ela era pequena. Joice sabia que era seu dever cuidar de Joel e zelar pelas coisas de casa, preparar o arroz pra quando o pai chegar cansado comer e dormir tranqüilo. Essa era a rotina de Joel e Joice. Rotina sem muitas novidades, pelo óbvio da palavra. Uma vida de silêncio que se passava dentro daquele cercadinho de madeira já depois da cidade, num lugar meio roça, onde ainda se ouvia alguns pássaros cantarem de vez em quando.

Essa era uma das maiores belezas que Joice tinha conhecido. O terreno do cercadinho de madeira era como um sonho. Pelo menos diante do barracão de lona onde moravam até pouco tempo e que acabou destruído pelas últimas chuvas. Ela se lembra da noite em que aconteceu o incidente. Joice e Joel estavam acordados, um pouco sonolentos por causa do adiantado da noite. O pai não tinha dormido de forma alguma. Esse era um hábito dos antigos dele. Desde a época da morte da mãe que, à noite, ele ficava assim, silencioso e tristonho. Tristeza profunda de se perceber pelos olhos. A chuva estava forte e isso ajudava a não deixar o pai pregar os olhos. Algumas horas da água caindo do céu e foi possível perceber a estrutura de barro-batido do chão úmido do casebre se sacudir. Mais que de repente as duas crianças estavam no colo do pai, que saiu correndo, sem tempo pra salvar nada. Por essas coisas lá do barraco de lona é que Joice acha o terreno do cercado um sonho. Pelo menos lá a terra não vai tremer em noite de chuva e não tem tanta goteira pra pingar na cara quando a gente quer mesmo é dormir.

Joel corre pelo terreno todos os dias. É a diversão mais divertida que ele encontrou. Lá naquelas bandas não há muita coisa pra fazer. Ao menos se ele pudesse sair com o pai, mas não podendo isso era suficiente. Quando não se conhece o todo qualquer parte satisfaz. Era de correria em correria, atrás das borboletas do quintal, que ele se comprazia em viver. Joice ficava mais era olhando aquilo, pois não tinha disposição de sair debaixo do sol quente pra espantar borboletas. Por momentos foram felizes na simplicidade e inocência de seus atos. Brincar é uma das coisas mais belas do mundo. Brincar de ser gente feliz, mesmo diante dessas tristezas todas.

Joice e Joel só não esperavam pelo que ia acontecer mais tarde, antes mesmo do pai chegar de sua labuta. Depois de tanto correr atrás das lagartas de azas, o menino de poucos quilos ficou sem ar. Não esse ar que nós temos, mas o ar de dentro. Caiu na porta, quando tentava correr pra perto da irmã com os olhos arregalados. Não teve forças pra chorar, apenas caiu e desmaiou. A mocinha também não soube o que fazer, nem mesmo chorar, somente arregalou os olhos tanto quanto os do irmão segundos antes e abraçou-se a ele. Joice teve medo de Joel não acordar nunca mais, como a mãe. Com o olhar fixo no pequeno, a espera de alguma reação, ela também dormiu. Uma cena que merecia de ter registro num daqueles filmes que passam no cinema e faz as pessoas se emocionarem. Infelizmente, não houve registro cinematográfico. O que aconteceu foi só isso.

Joel estava fraco demais por falta de vitaminas. Ele ficaria ainda mais fraco e doentio nas semanas seguintes, antes de dormir pra sempre, como a mãe. Ele, que gostava das borboletas, seria enterrado no quintal, com uma flor plantada sobre a cova pra enfeitar seu sono. Joice não teria mais sua companhia. A mocinha viveria uma vida de solidão em sua casinha de sonho dentro do cercadinho de madeira. Mas um dia isso haveria de acabar. O pai, mais confuso do que nunca e num ato de desespero, resolveu dar um fim àquela tristeza toda que se instalava em seu espaço. Todos dormiriam pra sempre, como num sonho distante...

Elementar



Intenso é o sol,

Que brilha do alto de seu trono,

Que cai em nossa cabeça,

Que some por trás da noite.

Intenso é o brilho da lua,

Que ilumina teus olhos,

Que me faz perder em sonhos,

Que se vai quando ainda é cedo.

Intenso é o mar,

Que lava nossas dores,

Que ganha tantas flores,

Que vai de regresso pra longe.

Intensos somos nós,

Que perdemos a vergonha,

Que perdemos a coragem,

Que ainda temos de amar.

Intensidade é apenas uma palavra,

Traduzida em logaritmos,

Perdida entre as palhas,

Transformada em cinzas e jogadas ao ar.

Devaneios


Tua indecência tão pura,

A consumir meu clérigo pensamento,

Nesta paisagem tão sombria,

De noite sem lua cheia.

Caminhar por entre paredes,

E espreitar teus doces devaneios,

Sem ao menos dizer adeus,

Ir-se tão depressa em carrossel.

Mas do que foges, meu amor?
Do vento, do sol, da solidão?

Foges porque já não podes estar,

A permanência é inconstante em teus olhos.

Também levo, pra bem longe,

Toda a minha inocência.

Pois, é tarde para amar.

Um dia nossos corações sentirão paz.

História de uma manchete de jornal




ESTE TEXTO TAMBÉM FOI PUBLICADO NO SITE JORNALIRISMO.

Estava estampado na manchete do jornal o fim da história de João da Silva, 21 anos, ou da suposta história: “traficante morto em acerto de contas”. Ele, que teria sido abortado pela mãe, não fosse a imbecil ter tomado o remédio errado. Ele, que aos seis anos foi estuprado pelo vizinho e ameaçado caso contasse para alguém sobre o fato, ganhou notoriedade naquela primeira página que lhe dedicou letras garrafais. Logo ele, que aos nove perdeu o pai, morto por engano pela polícia. Um ano depois perdeu a mãe, levada pelo câncer de útero em conseqüência da tentativa de aborto falha da qual nasceu João e de outras três que deram certo, das quais nasceriam outros tantos Joãos.

Filho único - algo raro para as famílias daquela região - foi largado no orfanato, de onde fugiu pouco tempo depois para viver nas ruas. Antes mesmo dos doze anos cheirou cola, experimentou crack e fumou um baseado. Da primeira experiência com as drogas, naquela noite fria de junho, ele ainda se lembra - ou se lembraria se estivesse vivo. A cola fazia parte da rotina de quem vivia na rua, mas João nunca havia experimentado. Não até aquele inverno. Porém, a fome, o frio e o medo de dormir e nunca acordar falaram mais forte. A sobrevivência viria por meio daquela substância, que logo seria substituída por algo mais forte.

Mas tudo isso não é importante, pois o que a manchete do jornal dizia era que o “traficante foi morto por vingança” e esse é o fato. Esse é o fato que esconde a trajetória de João, que aos quinze anos comprou um revólver para se defender. Ao menos era como justificava para a própria consciência aquela aquisição arriscada. Ele, que sonhou um dia ser médico pra salvar vidas, agora teria o poder de tirá-las dos homens. A arma também ajudaria na labuta por comida e pelo dinheiro das drogas. De assalto em assalto os seus sonhos ficavam mais distantes. Contudo, ainda existiam. “Dr. João da Silva”, diria, talvez um dia, a placa de seu consultório em algum prédio do centro da cidade.

Aos dezesseis anos João já tinha em sua ficha criminal uma larga experiência. Não sabia exatamente quantos atos ilegais cometeu. Sabia apenas de três assassinatos. Não foram planejados, pois ele não era de sangue frio. Foi uma necessidade. “Matei pra me defender”, justificou com o delegado quando foi detido pela primeira vez, aos dezessete anos. Não precisava ter se justificado, já que três meses após ser pego conseguiria fugir durante um motim na casa de detenção. João que sonhara com a medicina conseguiu ser um foragido da polícia. Ele que nem tinha culpa, que não teve chance, que não era dono de nenhum nome de peso.

No dia do seu aniversário de dezoito anos, quando finalmente alcançaria a maioridade, João da Silva também não tinha motivos para comemorar. Se fosse capturado pelos “ome”, não teria escapatória, seria cadeia. Naquela noite de aniversário não houve “parabéns pra você” e o jovem não ganhou presente algum. Mas teve uma sensação de liberdade jamais experimentada, principalmente depois de tragar o terceiro cigarro. Do alto do viaduto ele observava os carros a passarem pela avenida e os edifícios da cidade. A lua, do céu, iluminava seus olhos vermelhos e as lágrimas que por eles desciam. João da Silva chorou sem saber porque. Chorou, porquê era livre e não sabia voar.

João vivia a perambular pelas ruas, apesar de dormir quase sempre debaixo do mesmo viaduto. Aos vinte anos, graças a um assalto bem-sucedido com o apoio de um camarada – que infelizmente morreu na troca de tiros com os policiais – conseguiu uma grana boa. Dava até pra ter um barraco de vila. Mas João tinha amor demais pelo seu viaduto, que há quase dez anos o abrigava das chuvas de verão e de qualquer outra intempérie, para deixá-lo a revelia. O que iria fazer mesmo com o dinheiro era montar seu próprio negócio: comprar e revender “material” de primeira qualidade. Logo no primeiro carregamento, que estocou em um pequeno depósito ali perto, foi praticamente tudo o que tinha ganhado. O lucro viria com a revenda na zona sul, esperava.

No primeiro mês de trampo conseguiu ganhar alguns trocados, que gastou com coisas sem importância de relato. No segundo mês comprou mais, que negociou o pagamento em duas vezes: metade naquele momento e metade em quinze dias. Mas João não teve sorte, a polícia descobriu o seu depósito e levou todo o produto estocado. Ele, que nunca teve vocação pra economia, teria agora que negociar o pagamento da mercadoria perdida e poder continuar com o negócio. No encontro com os rapa dos quais comprava sentiu que estava numa furada. Eles deram uma semana para ele conseguir o pagamento. Era realmente encrenca. Descobriria isso com mais intensidade no fim de semana, quando os encontraria novamente. Ainda não tinha todo o dinheiro. Levaram o que conseguiu e lhe deram uma surra. Mais uma semana. Esse era o novo prazo para o aprendiz de traficante conseguir o restante da grana. Não conseguiu. Foi o seu erro.

No encontro do sábado de madrugada, João sentiu seu suor descer pelas costas quando levou o primeiro chute e caiu de joelhos. O estômago também teria sua dose de dor. O gosto do sangue veio à boca no momento em que ainda tentava dizer que, se dessem mais um prazo, arranjaria o dinheiro. Não teve tempo para falar, o soco no rosto lhe custou três dentes e, na seqüência, uma pancada na cabeça lhe tirou a consciência. Adormecia para não mais acordar. Pelo menos acabava ali o seu sofrimento.

A última imagem que veio à sua memória foi a da mãe e do pai - quando ainda era criança e queria ser médico - sentados numa sala apertada, sem piso e com goteiras no teto, a discutirem sobre educação. O pai dizia que aquilo era coisa de gente rica: “Homem precisa mesmo é de trabalho”, argumentava. Não sabia porque, mas naquele instante em que estava prestes a morrer, diante de pessoas que não sabiam de seu passado, de seus sonhos, de seus medos, ele sofreu e chorou em silencio algumas lágrimas já sem sentido. Levou dois tiros na cabeça, depois outros quatro no peito, dos quais um acertou o coração. Morreu descalço, sem roupa e sem dignidade. O pior mesmo era se soubesse que teria a foto estampada no jornal com a manchete: “traficante morto em acerto de contas”. Não era justo. Não com ele, João da Silva, que tudo o que fez na vida foi sonhar.

Rima Perfeita


A rima perfeita está no toque, mais do que no som ou na imagem.
Está na letra, antes da palavra ou estrofe.
Está no particular que compõe cada coletivo.
Está no Eu, no Você, no Nós.

A rima perfeita está no agora, mais do que no sempre ou no nunca.
Está no silencio, antes da canção ou grito.
Está na singularidade que compõe o plural.
Está no olhar, no sentir, no viver.

A rima perfeita é desafinada, pois não carece de perfeição.
É o caminho, não o destino.
É a nota, não a composição.
É o desejo que leva ao prazer.

A rima perfeita é o acaso, pois não precisa de planejamento.
É a expectativa, não a comemoração.
É o experimento, não o resultado.
É o raio de luz que traz o dia.

A minha rima não é perfeita,
Ela é desajeitada, triste, solitária.
A minha rima caminha sem rumo.
Ela está no mundo por acidente de percurso.
Minha rima não existe, é invenção de um poeta - sonhador.

Reencontro


A alegria do reencontro está na ternura do abraço, na beleza do sorriso e na incandescência de um olhar. Nosso reencontro não teve nada disso. Não nos tocamos e nem ao menos nos vimos, mas foi o suficiente para que eu sentisse o aperto no peito, o fervor nos olhos e uma felicidade quase incontrolável. Tão lacônico nossos dizeres, que em poucos minutos, segundos – talvez – se passaram. Fiquei meio sem saber o que escrever, neste bate-papo instantâneo. Então, só consegui digitar: “E aí, como vai?” A expectativa por uma resposta nunca foi tão grande. Não pelo fato da resposta em si ter alguma importância, mas apenas por ser uma resposta sua, uma articulação de seus membros para me responder algo.

Não conseguia acreditar. Depois de quatro meses contando cada dia, com a esperança de te reencontrar nos nossos espaços, nos recantos dessa saudade, depois de tanta procura sem resultados, aconteceu. Simples assim: aconteceu. Mas, decepcionei-me. A intensidade não foi a mesma das outras épocas, nossas épocas. Apesar do desejo por mais um momento de diálogo, de um pra sempre, da permanência, algo já está diferente. E acho que é em mim. Alguma coisa mudou em meu coração e não sei dizer o quê. O quê?

Breve também foi o seu adeus. Desta vez, com um significado distinto. A despedida se resumiu em “agora tenho que ir”. Eu também disse apenas “tudo bem, vai lá, mas não some...” Na verdade, o que gostaria de ter dito seria “não vá, ainda te amo”. Minhas palavras não saíram, ficaram para uma próxima vez, para um próximo dia, para um próximo reencontro. O medo de dizer te amo me persegue, é quase um trauma. Não consigo dizer do Amor. Quem saiba, até mesmo, já não consiga amar de fato. Pode ser, a psicologia explica isso. Não sou psicólogo.

Fiquei aqui ainda por alguns instantes, a esperar o teu regresso – repentino - para me abraçar e dizer entre suspiros que me ama e que já não vai mais partir. Fiquei. Essa também pode ser uma espécie de trauma, a minha espera contínua por coisas que tenho plena convicção, são utopias. Minha vida é uma utopia. Por isso, ainda te espero, para mais um “olá, quem sabe, pode ser...”