Campos de Arauto



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Marcelo tinha cinco anos quando viajou pela primeira vez, no lombo do cavalo, pelas margens do rio até a parte de cima, de onde as águas brotavam. Pelo menos essa era a viagem que guardara na memória como sendo a primeira. E isso é o que vale como verdade. Do pouco que se lembra, restam saudades daquele passeio que durara três dias inteiros e três noites. Passeio difícil pela carência de automóveis e recursos. De momentos em momentos a tropa - composta pelo pai, a mãe, dois irmãos, um mais velho e outro recém-nascido, além do tio - parava para descansar e tocar os animais pelo pasto da beira de estrada.

Aquela era época de frutas, como manga e umbu. Próximo ao rio algumas goiabeiras também estavam enfeitadas de frutos e pássaros, que se aproveitavam do pouco movimento para se fartarem. Foi debaixo de uma mangueira, a uns duzentos metros da margem do rio, que eles pararam daquela vez. Era ainda o início da tarde do segundo dia. Isso significa que teriam de trotar com os cavalos por mais umas trinta horas até chegarem à vila onde moravam alguns dos parentes.

Não há uma exatidão para se contar o tempo em que a família descansava em cada parada. Nessa tarde, a mãe de Marcelo – uma mulher com meia idade, aproximando dos 35 anos e conhecida como Cida de Zé, pois o seu marido era o Zé da Tropa – prepararia uma farofa pra eles espantarem a fome. Sem muito luxo, apenas uns peixes assados no calor das brasas improvisadas no chão, umas batatas doce e a farinha que Cida de Zé trouxera no embornalo. Essa refeição, comida quando a fome aperta o estômago, deixa até uma vontade de “quero mais”.

Mas nada era de fartura na viagem, a não ser as mangas que vez ou outra insistiam em cair perto de algum ser vivente a descansar, como se ameaçassem acertar a cabeça de alguém. Também as goiabas estavam a se perder. Mas estas não eram tão boas. Pois, ao comê-las, podia-se se deparar com algum bicho dos brancos dentro da fruta. Era preciso atenção caso não quisesse mastigar as lagartinhas doce-amargas. Marcelo mesmo comeu umas cinco. Não lagartas, mas goiabas. Mas ele não se importava se tivesse mesmo comido qualquer coisa diferente, o que valia era que se satisfez e se divertiu subindo na árvore para pegar as goiabas mais docinhas, que sempre ficam lá no alto.

A vida de Marcelo era feita de pequenas alegrias, como subir em árvores e comer frutas. Ele não sabia, mas essas coisas miúdas dão mais sabor à existência. E, ademais, a felicidade é algo que não se pode sair por aí a medir, como se fosse um pedaço de terra a venda ou um quilo de feijão. São nas entrelinhas das estórias, que quase nunca se tornam história, onde a gente, como Marcelo e sua família, constrói os casos mais bonitos de serem contados. E é preciso um pouco de inocência, da percebida nos olhos deste menino ainda descalço de muita sabedoria, para entender o mundo em seus enigmas.

Mistério é uma palavra que o pequeno garoto já ouviu muito. Das estórias que o avô contava quando ainda estava vivo - pois agora já se foi do alcance de nossos olhos - e repetidas na voz do pai tantas vezes, ele extraía a emoção dessas letras não totalmente compreendidas. Contava-se, naqueles campos, de almas penadas, lobisomem, mula-sem-cabeça e outros bichos assustadores. Isso era o mistério que ele conhecia, além da própria vida.

Depois de ter comido tudo o que agüentava, Marcelo dormiu por alguns minutos enquanto o resto da tropa também aproveitava para descansar. Foi assim que ele sonhou pela primeira vez com o avô desde que este partiu. Tratava-se de um estranho sonho, no qual o avô lhe mostrava uma viola já velha e cantava uma música que ele não esqueceria, nem após acordar. Era assim: “Pelo rio que vem a vida e por essas águas que lavam nossas mãos, Deus pai não deixe nunca, sofrer meu coração”.

E do sonho despertado, o menino não parava de repetir, tal como maritaca, esse verso. Só quando crescesse saberia o real significado da parte “sofrer meu coração. Porém, isso não é assunto para essas páginas, pois há o fim da viagem a retratar. Essa sim teve uma surpresa que não muito agradou. Logo que a tropa começou a trotar caíram já alguns pingos. Era chuva das caprichadas. Tiveram que parar novamente debaixo de um jatobá e atrasaram o percurso em mais uma hora, até as águas passarem. Não houve trovão nem raio, mas saíram encharcados e perderam parte da farofa que restara. Teriam que improvisar a comida do jantar. Mais um dia cavalgando e estariam finalmente no povoado para os festejos de Reis. Festa boa e de muita gente. Povo que vinha de todos os lados do rio para se encontrar ali.

Quando o fim da tarde chegou, Marcelo pode acompanhar o sol com os olhos até o momento em que ele se escondeu atrás das árvores. Era quase noite. A mãe preparou um mexido de peixe e outras iguarias da terra e todos se fartaram. Montaram uma cama de mentira na areia. Lá, dormiriam por umas oito horas. A noite passou sem contratempos. No dia seguinte levantaram pelas cinco da matina para seguir o último trecho. Desse final do percurso não cabe mais relato. Da festa tem muito a contar, mas não aqui nessas linhas tortas. E de resto, para o sossego geral, tudo se sucedeu ao esperado.

Palavras de uma tarde qualquer



O silêncio preenchia aquela caixa metálica espelhada enquanto quatro pessoas, incluindo a ascensorista e eu, subíamos para alguma sala do edifício.

[O elevador está no quarto andar...]

Uma voz feminina, já meio rouca pela idade, quebra o ar em uma frase quase sem sentido.

“...eles fazem isso só hoje e depois esquecem tudo”.

Disse aquela senhora que aparentava seus cinqüenta e poucos anos e segurava um panfleto. No papel, a imagem de uma mão atravessada na greta de uma cela segurando uma rosa vermelha. Na capa, letras uniformes: “Dia Nacional de Luta Antimanicomial”.

[O elevador passa pelo quinto andar...]

Senti um nó subir pelo peito e engasgar na garganta.

“Mesmo que seja só por um dia, mas não podemos perder a capacidade de nos sensibilizarmos diante de determinadas questões sociais”.

Essa foi a resposta que eu senti vontade de dar à senhora, quando ela questionou a movimentação.

[O elevador passa pelo sexto andar...]

Entendo a revolta daquela mulher pela passividade das pessoas quando lhes são apresentados alguns problemas. Apenas por este ponto de vista. Mas, eu me sensibilizei com a tal manifestação pelas ruas de Belo Horizonte. Talvez tenha sido mesmo só por algumas horas, mas fui tocado.

[O elevador passa pelo sétimo andar...]

As letras dos cartazes, o barulho do som no caminhão e aqueles olhinhos que me observavam enquanto os Seres Humanos marchavam. Aquilo me tocou de uma forma profunda e eu chorei. Pensei em quanto eles devem sofrer trancafiados dentro de um quarto por serem diferentes. Penso também que a minha emoção, em parte, foi pelo fato de ver uma manifestação. Um aglomerado de pessoas que gritavam por mudanças no comportamento social.

[O elevador para no oitavo andar...]

Isso é luta. E a luta existe sempre que há esperança e a necessidade de transformação. Espero que esse sentimento aqui dentro de mim não passe. Espero também que permaneça a capacidade de ver os outros, e não somente o meu umbigo.

[A porta do elevador se abre...]

Saio da caixa ainda pensativo e sem ter dito sequer uma palavra.

Subtração lacônica


[... E eis que o pó transformou-se em uma matéria mais consistente e sólida, da qual seria feita a Criatura]. Rabiscou César em uma folha amassada de papel. Ele estava meio atordoado naquela manhã. Acordou pensando na lógica da existência. O que é a vida? Esta era a questão da sua dor de cabeça matutina. Além da interrogação, seu mal-estar também tinha outra explicação: ressaca [moral e física]. Dormira poucas horas, bebera muito na noite anterior e aprontou besteira.

Eram nove horas e trinta e sete minutos e mais alguns segundos. Havia quase meia hora que ele remoia em seus pensamentos os porquês psico-freudianos. Felicidade, vida, amor, saudade, lembrança, sonhos, morte. Tudo é relativo, como a física, a química, a biologia e todas as outras matérias da subjugação humana. Só a matemática continua com a sua lógica imoral. E o seu saldo emocional [matemática aplicada à psicologia], obtido com a aplicação da fúria e ciúmes diante de Júlia, era negativo. Estava em débito com quem mais amava por causa de umas poucas cervejas.

Não tinha sentido viver sem Júlia. Foi a conclusão a qual César chegou. Não queria levantar da cama e ter que enfrentar o mundo depois daquela briga. Resolveu dormir mais um pouco. Quem sabe quando acordasse perceberia que não se passava de um pesadelo. Aos poucos, pegou no sono novamente. Despertou somente às três da tarde com o toque do telefone. Era Marina, a melhor amiga de sua amada. Atendeu meio sonolento: “Oi”. Do outro lado da linha uma voz ofegante disse: “César, a Júlia se suicidou”. Ele desligou o telefone, levantou-se ainda mais confuso, abriu a janela de seu quarto e pulou. A força da gravidade o transformou em matéria [sem vida]. Mais alguns anos e ele voltará ao pó.