Retrato


Hoje eu acordei com uma daquelas sensações estranhas, como se o mundo estivesse ficando menor a cada dia. Levantei-me bem cedo, antes mesmo de o sol nascer, e fiquei a observar pela janela esse meu universo. Toda a leveza que tem o amanhecer é de uma paz que me perturba. Sim, não sei por que, mas fico angustiado de ver esse silêncio no ar, cortado apenas por algum pássaro cantando em galhos secos na árvore do canteiro central.

Senti meu respirar molhar a vidraça. Uma fumaça saía pela minha boca enquanto movimentava o ar para os pulmões. Sinal de que estou vivo. Isso me trouxe à mente lembranças remotas. É estranho como tudo se transforma aos poucos. Dia desses estava eu a brincar por aí, correndo despreocupadamente pelo quintal da fazenda. A gente também muda e não percebe. Olho para as minhas mãos, já com as marcas da velhice, e vejo como cresci. O pior, ou quem sabe seja o melhor, são as mudanças que ocorrem por dentro.

Um carro passando pela rua me distrai. Há água de chuva espalhada pelas calçadas. O temporal dessa noite parece que foi realmente forte. Deve ter alagado boa parte da cidade. Mas não preciso me preocupar, pois da minha janela estou seguro. Outro automóvel surge na esquina. As pessoas estão começando a acordar para esta segunda-feira. Em instantes também precisarei me preparar para o trabalho e dou graças que estarei de férias em breve. Dezembro tem algo do que possamos nos alegrar.

Ao pensar nas férias, lembro-me que não tarda também a aposentadoria. Sempre tive interesse pelo dia em que ela chegaria, mas ultimamente essa ideia me deixa um pouco inquieto. Dizem que faz parte da idade. Quando a família está criada, os filhos já saíram de casa e só resta o casal para compartilhar da própria solidão. Volta à minha cabeça pedaços de imagens da juventude, como retratos antigos. Acho que fui uma pessoa feliz.

Sobre a mesinha de cabeceira, ao lado de minha esposa mergulhada em seu sono profundo, uma foto de família me traz certo orgulho. Também sobre o móvel, o relógio me mostra que é hora de preparar o café, antes de seguir para o serviço. Lá fora, pela janela, os raios de sol começam a aparecer no céu ainda parcialmente pintado de escuro. Um tom laranja se apresenta para cobrir esta manhã de verão. Não sei se são meus olhos, mas o mundo inteiro hoje parece um grande retrato. Ou talvez eu esteja mesmo ficando velho e perturbado.

3 comentários:

Amanda Goulart Coach disse...

Estava com saudade do seu canto! Voltarei sempre! Grande abraço!

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

Olá foi a 3ª vez que li o teu blogue e reflecti tanto!Bom Trabalho!
Até à próxima