Flores para Geralda: uma história esquecida na memória



ESTA CRÔNICA TAMBÉM FOI PUBLICADA NO SITE JORNALIRISMO E NO JORNAL ESTADO DE MINAS, CADERNO D+.

No rádio, posto sobre a mesinha de cabeceira da cama, toca uma velha canção. O programa é mais um daqueles típicos das manhãs, com músicas antigas e informações. O locutor, vez ou outra, interrompe a seqüência com sua voz melodramática e grave para ler alguma carta e contar histórias. Nesse ambiente nostálgico mais uma figura compõe o espaço com uma vida monótona.

Geralda está deitada. Seu estado é de quem não está completamente acordado nem dormindo. Nos últimos anos ela tem parecido uma criança e faz hora para se levantar. Como não há ninguém para lhe encher a paciência, pouco importa se vai ficar o dia inteiro na cama ou se vai madrugar.

Ela gosta de ouvir aquele programa. Há muitos verões pensa em escrever uma carta contando a sua história e enviar ao locutor. Mas ainda não teve coragem suficiente. Até já começou a desenhar umas letras no papel, mas ficaram feito rabiscos sem sentido. Ela não é mulher de muita inspiração para fazer drama da própria vida, apesar de tudo o que tem passado.

Apenas uma pequena quantidade de luz entra pela janela, deixando o cenário com um aspecto solitário. Geralda vive sozinha desde que o marido faleceu, há 13 anos. Não teve sorte com filhos. O único que nasceu vivo durou somente quatro meses e morreu de pneumonia. Sua casa fica em uma região antiga da cidade, onde quase todas as residências já foram condenadas pelo tempo. Anos que também deixaram marcas na sua pele. No próximo mês completará 74 anos desde sua meninice.

Para essa mulher, de vista enfraquecida pela catarata e de coração mole por natureza, os dias não têm mais significado para comemorar. Sua tristeza é de dar dó em qualquer alma vivente que a vê. Raramente sai do seu recanto. Só mesmo quando vai ao mercadinho pra comprar verduras. A alimentação é baseada no apetite, e este não tem ajudado muito. Isso se percebe pelos poucos quilos. A pele está, a cada dia, mais enrugada e os cabelos ralos já esbranquiçaram.

Nesta manhã de domingo, Geralda planeja caminhar pelo quarteirão para testar os ossos. Isso se houver coragem de se por de pé. Ela precisa mesmo respirar um ar puro, pois os pulmões têm dado sinal de que estão carecendo de mais vida. Porém, falta-lhe ânimo para abrir a porta e enfrentar toda a catástrofe do mundo lá fora. É mais fácil continuar em sua cama esperando o momento em que a morte virá buscá-la.

Ela tem pensado muito na morte ultimamente. Morrer seria melhor do que permanecer viva com tanto vazio em volta, além de toda a solidão no peito. Poucas vezes esquece este assunto. Só quando a memória falha. Nesses momentos não há o que pensar. A saudade do falecido marido também lhe é recorrente. Talvez a morte lhes unissem novamente, ela espera.

Uma música mais agitada no rádio faz Geralda acordar definitivamente. Já são dez horas e ela decide se levantar. Precisa ir ao banheiro. Primeiro senta na beirada da cama e procura pelas sandálias, que, apesar de estarem logo a sua frente, demora a encontrar. A velhice tem dessas e d’outras tantas coisas. Calça-as e pega a bengala. Anima-se. São apenas alguns metros entre a cama e o banheiro. Contudo, a anciã leva quase um minuto para percorrê-los.

Sentada no vaso, Geralda sente-se como se um frio lhe invadisse. Estava com a bexiga a ponto de estourar e o alívio dá também certo prazer. De repente, tudo começa a ficar escuro e ela cai. Poderia ser um desmaio por causa da fraqueza, mas não foi. Com a cabeça encostada ao piso úmido e sujo, Geralda finalmente encontrou a esperada morte.

Um comentário:

Aline Ramos disse...

Coitada da Geralda!!!
Mas talvez foi melhor assim...
que ela descance em paz.