Trilogia do Tempo em Giro - Espera e Segredos



Margarida não dormiu bem à noite. Desde que foi demitida da loja de roupas, lá no centro da cidade, ela tem estado atormentada. São tempos difíceis. A mulher perdeu o emprego porque a empresa a considerava velha demais para trabalhar em um estabelecimento daqueles. Preferiu trocá-la por uma jovenzinha de 20 anos. “Veja se pode uma coisa dessas?” Questionava sempre a mulher com todos aos quais contava o motivo da demissão.

Aliada à perda do emprego vieram brigas com o marido e o início de uma depressão. O matrimônio já não era tão estimulante como há 32 anos, quando se casaram. Ela também se sentia um pouco inútil em não poder ajudar o companheiro, que era taxista e não ganhava muito dinheiro, com as despesas da casa. A sua tristeza de mulher se escondia por trás daqueles olhos grandes e vivos aos 51 anos. Margarida aprendeu, desde criança, que às vezes é preciso sofrer calado.

A mulher acordou às quatro da madrugada e não conseguiu mais dormir. Ficou deitada na cama, pensando na vida e criando fantasias na cabeça. Talvez conseguisse um novo emprego em breve. Tinha deixado o currículo em muitas lojas e havia esperança de ser chamada. Quem sabe, se isso acontecer, tudo pode ser diferente. Acreditava, pois era a única coisa que ainda lhe tirava um pouco a depressão e as memórias ruins.

Por não saber fazer nada além de cozinhar, lavar e passar, Margarida sempre teve trabalhos de doméstica. Somente nos últimos anos garantiu o serviço na loja de roupas, onde executava atividades variadas por mais de dez horas ao dia. Apesar de cansativas, ela gostava das tarefas. Naquela madrugada, a mulher se colocou a pensar em como seria caso conseguisse um novo emprego. Poderia até comprar uma máquina de lavar nova ou um fogão elétrico.

O dia amanheceu lentamente. Às seis horas Margarida já tinha se colocado de pé e preparado o café da manhã. A qualquer momento o marido voltaria para a casa e era dever dela deixar tudo pronto para ele se alimentar e descansar. Como o homem demorava a chegar e o filho ainda dormia, ela resolveu assar alguns pães de queijo que havia amassado no dia anterior. Tudo muito simples, mas feito com carinho. Essas pequenas coisas faziam sua vida ganhar um pouco mais de sentido. O café ficou pronto, os pães de queijo assaram e nada do esposo retornar. “Algo deve ter acontecido”, pensou a mulher em sua mente ingênua. Aconteceu. Porém, ela não ficaria sabendo da verdadeira história.

Trilogia do Tempo em Giro - Coisas que acontecem por aí



Antônio começou a trabalhar um pouco mais tarde naquela noite, às nove horas. Como taxista, era preciso ralar duro para conseguir sustentar a família. Sua mulher estava desempregada há oito meses e arrumava apenas uns bicos de vez em quando. Dos três filhos, dois se casaram e um ainda morava com ele. Geralmente, o homem já de longa data, prestes a completar 56 anos, saía de casa por volta das seis e retornava apenas no dia seguinte. Trabalhar durante a noite era perigoso, mas essa foi a maneira que ele encontrou pra ganhar uns trocados.

O táxi não era novo, tinha mais de cinco anos de uso continuo. Fora comprado por meio de um financiamento, quitado recentemente. O carro e a pequena residência em um dos bairros distantes da cidade foram os bens que Antônio conseguiu adquirir em muito tempo de trabalho. Além da família, algo de estima para aquele homem. Ele suou bastante até hoje para manter a ordem em tudo e não se desesperar diante de tantos problemas em casa. Brigas com a esposa, falta de educação dos filhos e necessidade de dinheiro. Essas e outras coisas que acontecem nas famílias.

O motorista dirigiu o veículo pelo centro da cidade em busca de passageiros. Um aqui e outro ali iam desenhando o seu trajeto de taxista. Nesta vida, ele conheceu cada canto das ruas mais vazias. Percorreria de olhos fechados qualquer lugar que necessitasse dentro da linha do município. Isso lhe deixava com ar de felicidade, pois acreditava representar a sua capacidade em ser um bom trabalhador do volante.

A noite não estava muito boa. Apesar de ser sexta-feira, o movimento era pouco. Em seis horas de trampo ele conseguiu ganhar somente 140 reais. Se descontasse o valor do combustível e as taxas extras que pagava pela prestação do serviço, sobraria menos de 80 reais. Nos últimos meses tem sido difícil trabalhar, pois a concorrência é grande. A esperança de Antônio é que no final da noite o número de viagens aumente, quando as pessoas começam a voltar para as casas depois das festas e bebedeiras.

Das três da madrugada até as seis o taxista fez mais alguns trocados. Seria o suficiente para passar bem os dois próximos dias. Por volta das cinco e meia ele pegou o último cliente em uma boate e foi levá-lo. O garoto era conhecido de outras viagens de fim de noite. Podia ser sorte do motorista o passageiro morar longe. Isso significava corrida mais cara e lucro certo. Foram 45 minutos até o condomínio onde vivia o jovem, que fedia a cigarro e dormiu metade do trajeto. Dinheiro na mão, Antônio pegou a rodovia para cortar caminho e chegar em casa mais cedo.

Pela estrada ele ouvia no rádio as primeiras notícias daquele sábado e se sentia bem, apesar do cansaço e do sono. Instantes depois de pegar a rodovia, uma puta deu sinal e Antônio resolveu parar. Não era nenhum programa e ele sabia disso. A garota de olhar triste estava indo descansar após uma noite de trabalho. No táxi eles quase não se falaram. Vez ou outra o homem olhava pelo retrovisor as pernas longas e torneadas da rapariga. Ela devia ter vinte e poucos anos e parecia ser boa de cama.

Os olhares foram percebidos e a moça se insinuou. Não era possível agüentar a provocação, afinal ele era homem. Além de tudo, prostitutas estão sempre prontas e loucas por um sexo quente e gostoso. Antônio não resistiu e meteu como um cavalo nela em um motelzinho barato ali perto mesmo. Terminado o serviço, deixou-a numa rua do centro e foi embora tomar o café da manhã com a esposa e o filho.

Trilogia do Tempo em Giro - Se a vida não fosse puta



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Patrícia entrou no táxi depois de esperar por quase 30 minutos no ponto em frente ao motel. Tanto tempo se justificava pela localização do estabelecimento, uma rodovia fora do perímetro urbano. Essa fora mais uma noite de muito trabalho e pouco prazer. A maquiagem já havia sido retocada cerca de cinco vezes nas últimas oito horas. Na bolsa, além do batom vermelho e demais utensílios de beleza, ela levava o dinheiro que ganhara de homens enfadonhos, gordos e rabugentos que lhe contrataram para alguns minutos de sexo.

A rotina daquele trabalho há muito não lhe dava esperança de encontrar o príncipe encantado que se apaixonaria por ela, a puta bela de pernas grandes e poses extravagantes. Dentro do táxi ela percebia a paisagem pobre da periferia passar pela janela, como se fosse um mundo esquecido pelo resto da humanidade. Barracos de madeira e casebres pendurados nos morros. Mas estava por demais distraída para se sensibilizar com a tragédia dos homens.

A jovem rapariga, com apenas 22 anos, notou o olhar do taxista pelo retrovisor. Ele observava suas pernas dentro da saia curta. Patrícia ficou meio desconcertada em princípio, até mesmo envergonhada com aquilo. O homem ao volante levava no dedo a aliança de um compromisso conjugal e no rosto, junto com o bigode grande, as marcas de uns cinqüenta e poucos anos. Ele voltou a olhar as curvas da moça e ela pode perceber, então, o desejo naqueles olhos.

Sem muitas palavras e uma negociação rápida, eles chegaram a um motelzinho de beira de estrada, bem mais modesto do que os outros onde ela esteve durante a noite. Os letreiros luminosos já não funcionavam e, no muro, podiam-se ler palavrões pichados. Entraram no quarto pequeno e tiraram as roupas sem muita cerimônia. Em menos de 20 minutos tudo havia sido consumado e os dois corpos se estiraram lado a lado descansando. O taxista acendeu um cigarro e ofereceu outro a Patrícia, que aceitou prontamente. Fumaram e, em seguida, vestiram as roupas novamente.

Já no carro o senhor perguntou onde ela queria ficar. Patrícia deu a direção e eles seguiram em silêncio, apenas com algumas trocas de olhares desconcertantes de vem em quando. Poucos quilômetros à frente a moça desceu do veículo. O táxi seguiu seu trajeto. A rapariga também continuou seus passos tortos de quem está cansada. O salto machucava seus pés e a coluna doía.

Além de todas essas inconveniências de quem ganha a vida na noite, Patrícia ainda precisou ouvir assovios e piadas de mecânicos que começavam o dia em uma oficina da esquina. Não reclamava, apenas colocava um pé diante do outro para chegar a sua casa e dormir um pouco. O corpo exausto não permitia à sua mente funcionar corretamente. Assim, ela só caminhava. Já em seu habitat, a solidão lhe veio à porta receber com cumprimentos mudos. O estreito apartamento bagunçado revelava sua intimidade revirada de mulher da vida, que vive só, sem ninguém pra lhe ouvir e com muito a dizer.

* Diz-se do nome Patrícia “aquela que tem a solidão sempre como companheira”

Flores para Geralda: uma história esquecida na memória



ESTA CRÔNICA TAMBÉM FOI PUBLICADA NO SITE JORNALIRISMO E NO JORNAL ESTADO DE MINAS, CADERNO D+.

No rádio, posto sobre a mesinha de cabeceira da cama, toca uma velha canção. O programa é mais um daqueles típicos das manhãs, com músicas antigas e informações. O locutor, vez ou outra, interrompe a seqüência com sua voz melodramática e grave para ler alguma carta e contar histórias. Nesse ambiente nostálgico mais uma figura compõe o espaço com uma vida monótona.

Geralda está deitada. Seu estado é de quem não está completamente acordado nem dormindo. Nos últimos anos ela tem parecido uma criança e faz hora para se levantar. Como não há ninguém para lhe encher a paciência, pouco importa se vai ficar o dia inteiro na cama ou se vai madrugar.

Ela gosta de ouvir aquele programa. Há muitos verões pensa em escrever uma carta contando a sua história e enviar ao locutor. Mas ainda não teve coragem suficiente. Até já começou a desenhar umas letras no papel, mas ficaram feito rabiscos sem sentido. Ela não é mulher de muita inspiração para fazer drama da própria vida, apesar de tudo o que tem passado.

Apenas uma pequena quantidade de luz entra pela janela, deixando o cenário com um aspecto solitário. Geralda vive sozinha desde que o marido faleceu, há 13 anos. Não teve sorte com filhos. O único que nasceu vivo durou somente quatro meses e morreu de pneumonia. Sua casa fica em uma região antiga da cidade, onde quase todas as residências já foram condenadas pelo tempo. Anos que também deixaram marcas na sua pele. No próximo mês completará 74 anos desde sua meninice.

Para essa mulher, de vista enfraquecida pela catarata e de coração mole por natureza, os dias não têm mais significado para comemorar. Sua tristeza é de dar dó em qualquer alma vivente que a vê. Raramente sai do seu recanto. Só mesmo quando vai ao mercadinho pra comprar verduras. A alimentação é baseada no apetite, e este não tem ajudado muito. Isso se percebe pelos poucos quilos. A pele está, a cada dia, mais enrugada e os cabelos ralos já esbranquiçaram.

Nesta manhã de domingo, Geralda planeja caminhar pelo quarteirão para testar os ossos. Isso se houver coragem de se por de pé. Ela precisa mesmo respirar um ar puro, pois os pulmões têm dado sinal de que estão carecendo de mais vida. Porém, falta-lhe ânimo para abrir a porta e enfrentar toda a catástrofe do mundo lá fora. É mais fácil continuar em sua cama esperando o momento em que a morte virá buscá-la.

Ela tem pensado muito na morte ultimamente. Morrer seria melhor do que permanecer viva com tanto vazio em volta, além de toda a solidão no peito. Poucas vezes esquece este assunto. Só quando a memória falha. Nesses momentos não há o que pensar. A saudade do falecido marido também lhe é recorrente. Talvez a morte lhes unissem novamente, ela espera.

Uma música mais agitada no rádio faz Geralda acordar definitivamente. Já são dez horas e ela decide se levantar. Precisa ir ao banheiro. Primeiro senta na beirada da cama e procura pelas sandálias, que, apesar de estarem logo a sua frente, demora a encontrar. A velhice tem dessas e d’outras tantas coisas. Calça-as e pega a bengala. Anima-se. São apenas alguns metros entre a cama e o banheiro. Contudo, a anciã leva quase um minuto para percorrê-los.

Sentada no vaso, Geralda sente-se como se um frio lhe invadisse. Estava com a bexiga a ponto de estourar e o alívio dá também certo prazer. De repente, tudo começa a ficar escuro e ela cai. Poderia ser um desmaio por causa da fraqueza, mas não foi. Com a cabeça encostada ao piso úmido e sujo, Geralda finalmente encontrou a esperada morte.

Romance contemporâneo: desejo e solidão



Nem todos os nossos passos foram certos e firmes naquela madrugada de sábado, quase manhã de domingo. Saímos da boate depois de alguns beijos ardentes e já desejosos de algo mais. Percorremos, em poucos minutos, os três quarteirões que separam a casa noturna do apartamento dela, mulher feita, de pose, que vive bem, em cobertura da zona sul. Enquanto eu sou apenas mais um jovem aventureiro que curte loucuras fora da linha e mora em república estudantil. No caminho, conversamos sobre amor, sexo e futuro. Palavras vazias que voavam pelo ar, como a fumaça do cigarro nojento tragado lentamente por aquela boca carnuda.

Seguia-a, tal um cachorro perdido a qualquer sujeito desconhecido que lhe afaga a cabeça. Não era carência. Talvez fosse, antes disso, necessidade de solidão. Pois, só percebemos mesmo que desejamos estar solitários depois que a noite acaba e estamos sobre os lençóis amassados e com alguém estranho ao nosso lado. Mas isso é assunto pra ser discutido em linhas ainda por vir. Acompanhei o caminho sem questionar a minha direção. As respostas para as perguntas eram sempre planejadas, inconscientemente, como tentativa de me elevar o mais perto do seu mundo, tão distante, quase escondido aos olhos do meu universo errante.

Senti certo palpitar diferente em meu peito. Tive medo de ser carinho puro, daqueles que nos levam ao amor. Mas não vacilei e continuei até o prédio seguinte, frondoso, onde entraríamos. Senti, por alguns momentos, a sua mão a querer tocar a minha, e todas essas coisas que acontecem em primeiro encontro. Embarcamos no elevador espelhado, onde podia se ver por todos os ângulos. Receei que aqueles reflexos fossem olhos a nos observar, como se condenassem a nossa aventura. Repreensão de mãe por algo errado. Mas passou rápido. A caixa se abriu e saímos em direção a uma das portas à frente.

Enquanto a chave girava na fechadura, pensei em como as coisas são sutis. Não sabia ao menos seu nome completo e tampouco ligava para este fato. Queria mesmo era sentir suas pernas me cercando enquanto movimentava-me dentro do seu corpo. Mas este acontecimento ficaria pra mais tarde. Ela me convidou a entrar no pequeno, porém belo, apartamento. Diferente de todo lugar onde já pisei. No chão, um tapete com estampa de pelos de zebra. Pela parede, quadros de uma arte abstrata, pós-moderna e emocionante. Ao canto da sala, sobre a mesa, outro objeto revelou-me mais um pouco dela: livros abertos com dizeres de filósofos gregos e, ainda, uma estante recheada de clássicos de todas as literaturas.

Observei a habitação, como se fosse um animal a reconhecer o novo ambiente. Ela foi à cozinha e retornou em seguida, com duas taças. Ao notar as rugas na minha testa, explicou-me as artes. Falou sobre o quadro em que se viam olhos femininos com lágrimas de vidro. Foi aí que pensei em minha ignorância artística. Recebi a taça e provei o líquido gostoso. Doce álcool com sabor de morango. Ouvia-se o som que começava a tocar. Uma voz romântica, meio rouca, cantava qualquer canção européia, estilo rock melódico.

Sentamos na sacada para beber e conversar. A lua estava brilhante junto a todo aquele céu escuro, misterioso. Falamos novamente de amor, sexo e futuro e ela acendeu mais um cigarro. Entre um gole e uma frase esparsa, alguns beijos. Quando as taças já estavam quase vazias ela segurou em minha mão e disse: “vamos...”. E fomos. Os beijos se intensificavam e as peças de roupa caíam. O frenesi tomou conta dos nossos corpos.

Depois de tantos movimentos repetitivos, audazes, e de um estremecer que parece nos tirar e devolver a alma em segundos, ela se acalmou. Estava exausta e meio tonta, vi nos seus olhos. Sorriu e eu a beijei. Permaneci acordado, enquanto ela, deitada no meu peito, mergulhava em sonhos incógnitos. O dia foi amanhecendo aos poucos e, pela janela, pude ver a lua se despedindo. Em minha mente, pensamentos recônditos entravam em ebulição.

Levantei-me levemente para não acordá-la. Vesti a blusa e as outras peças do meu traje. A pele ainda estava úmida pelo suor. Fui ao banheiro e esvaziei a bexiga, quase por estourar de tanto mijo. Pela porta do quarto, observei por alguns instantes aquele corpo nu a dormir. Abri a porta da sala e saí para o corredor. O elevador não demorou muito. Desci pensativo. Já do lado de fora do edifício eu lembrei que não tinha o telefone dela, nem ao menos recordava o número do apartamento. Não dei muita atenção a isso e segui andando. Queria apenas ficar sozinho pra curtir minha solidão.

Sobre o destino, o amor e outras mentiras


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Não houve comoção, a princípio. Apenas um leve estremecer da espinha dorsal. Fiquei pensativo, digerindo aquela notícia. A morte de Mariana veio sacudir as minhas lembranças. Trinta anos após o nosso breve - porém intenso – envolvimento, parei para pensar em toda essa história de destino, amor e felicidade. Imaginei, por alguns minutos, como teria sido a minha vida se a houvesse passado ao lado daquela louca rapariga de olhos azuis e cabelos ruivos. Talvez ela não tivesse morrido tão jovem, ainda no calor dos quarenta e nove anos.

Soube do falecimento de Mariana por uma amiga em comum da nossa época de aventuras amorosas em noites desiludidas, a Raquel. Apesar do distanciamento emocional, essa amiga permaneceu como companheira de outras tantas desilusões. Foi Raquel quem nos apresentou e quem mais incentivou o nosso namoro. Relacionamento conturbado, principalmente devido a minha necessidade de liberdade e ao meu apreço à libertinagem.

Acabei de desligar o telefone e ainda estou sentado nessa poltrona antiga de pai atencioso. A casa está vazia. Meus filhos foram para a faculdade e a minha esposa foi visitar alguém no hospital. Nesses dias de descanso, já que me recupero de um leve Acidente Vascular Cerebral, tenho tempo para pensar no que quiser. E agora estou pensando em Mariana. Tento imaginar o seu corpo estirado sobre a calçada, em frente ao velho prédio em que vivera por todos esses anos. O mesmo apartamento, no alto do décimo segundo andar, onde passamos noites inteiras observando o céu, as estrelas e o infinito de nossos sonhos. Faltava-nos o juízo e sobrava desejo, saciado em parte por três elementos: o sexo, o cigarro e o álcool.

Não entendo o motivo, mas as recordações não chegam a tocar meus sentimentos. Acho que os perdi todos ao longo da vida. Aprendi a representar os papéis que me foram designados de uma maneira tão fiel que não sobrou espaço para essas coisas que transparecem fraqueza. Devo estar velho demais para me permitir tais embaraços. Olho pela janela afora e vejo tantas coisas. Vejo-as sem perceber a densidade do mundo que me cerca nesta manhã de verão. Uma pergunta incomoda meus pensamentos: o que teria levado Mariana ao suicídio?

Há muitos mistérios escondidos atrás dos olhos das pessoas. Boa parte, não conseguiremos desvendar jamais. A morte de Mariana talvez fique assim, inexplicável. Ela sempre teve seus segredos e isso dava ainda mais charme à sua aparência de menina sapeca. Foi esse encanto que me fez perder a cabeça e viver alguns dos anos de maior intensidade da minha juventude.

Fogem-me da memória todas as lembranças quando ouço um barulho de chave na porta. É a minha esposa que chega. Ela entra distraída e eu a observo. Parece uma mulher estranha, apesar de estarmos casados há mais de vinte e cinco anos. Nunca me acostumei com a presença dela, mas consigo fingir bem. O que fizemos nesse período foi seguir à risca o protocolo de casal. Temos até uma foto de família-feliz sobre a estante.

Dos meus olhos caem algumas lágrimas, que não chegam a ser notadas. Minha esposa coloca uma bolsa sobre a mesa, me fala algo sem importância e segue para o quarto. Só então percebo que estou chorando. Acho que, mesmo sem querer, me comovi com a morte de Mariana. A idade nos deixa desse jeito contraditório, de quem quer ser o herói forte, mas tem o coração partido. Minha vida me deixou assim. Talvez tenha sido culpa do destino, ou do amor, que nunca me deixou acreditar nas circunstâncias. As coincidências me fizeram pensar que tudo era farsa. Agora vou lavar e enxugar esse rosto velho, despido das máscaras. Preciso saber do velório de Mariana.