História de uma manchete de jornal




ESTE TEXTO TAMBÉM FOI PUBLICADO NO SITE JORNALIRISMO.

Estava estampado na manchete do jornal o fim da história de João da Silva, 21 anos, ou da suposta história: “traficante morto em acerto de contas”. Ele, que teria sido abortado pela mãe, não fosse a imbecil ter tomado o remédio errado. Ele, que aos seis anos foi estuprado pelo vizinho e ameaçado caso contasse para alguém sobre o fato, ganhou notoriedade naquela primeira página que lhe dedicou letras garrafais. Logo ele, que aos nove perdeu o pai, morto por engano pela polícia. Um ano depois perdeu a mãe, levada pelo câncer de útero em conseqüência da tentativa de aborto falha da qual nasceu João e de outras três que deram certo, das quais nasceriam outros tantos Joãos.

Filho único - algo raro para as famílias daquela região - foi largado no orfanato, de onde fugiu pouco tempo depois para viver nas ruas. Antes mesmo dos doze anos cheirou cola, experimentou crack e fumou um baseado. Da primeira experiência com as drogas, naquela noite fria de junho, ele ainda se lembra - ou se lembraria se estivesse vivo. A cola fazia parte da rotina de quem vivia na rua, mas João nunca havia experimentado. Não até aquele inverno. Porém, a fome, o frio e o medo de dormir e nunca acordar falaram mais forte. A sobrevivência viria por meio daquela substância, que logo seria substituída por algo mais forte.

Mas tudo isso não é importante, pois o que a manchete do jornal dizia era que o “traficante foi morto por vingança” e esse é o fato. Esse é o fato que esconde a trajetória de João, que aos quinze anos comprou um revólver para se defender. Ao menos era como justificava para a própria consciência aquela aquisição arriscada. Ele, que sonhou um dia ser médico pra salvar vidas, agora teria o poder de tirá-las dos homens. A arma também ajudaria na labuta por comida e pelo dinheiro das drogas. De assalto em assalto os seus sonhos ficavam mais distantes. Contudo, ainda existiam. “Dr. João da Silva”, diria, talvez um dia, a placa de seu consultório em algum prédio do centro da cidade.

Aos dezesseis anos João já tinha em sua ficha criminal uma larga experiência. Não sabia exatamente quantos atos ilegais cometeu. Sabia apenas de três assassinatos. Não foram planejados, pois ele não era de sangue frio. Foi uma necessidade. “Matei pra me defender”, justificou com o delegado quando foi detido pela primeira vez, aos dezessete anos. Não precisava ter se justificado, já que três meses após ser pego conseguiria fugir durante um motim na casa de detenção. João que sonhara com a medicina conseguiu ser um foragido da polícia. Ele que nem tinha culpa, que não teve chance, que não era dono de nenhum nome de peso.

No dia do seu aniversário de dezoito anos, quando finalmente alcançaria a maioridade, João da Silva também não tinha motivos para comemorar. Se fosse capturado pelos “ome”, não teria escapatória, seria cadeia. Naquela noite de aniversário não houve “parabéns pra você” e o jovem não ganhou presente algum. Mas teve uma sensação de liberdade jamais experimentada, principalmente depois de tragar o terceiro cigarro. Do alto do viaduto ele observava os carros a passarem pela avenida e os edifícios da cidade. A lua, do céu, iluminava seus olhos vermelhos e as lágrimas que por eles desciam. João da Silva chorou sem saber porque. Chorou, porquê era livre e não sabia voar.

João vivia a perambular pelas ruas, apesar de dormir quase sempre debaixo do mesmo viaduto. Aos vinte anos, graças a um assalto bem-sucedido com o apoio de um camarada – que infelizmente morreu na troca de tiros com os policiais – conseguiu uma grana boa. Dava até pra ter um barraco de vila. Mas João tinha amor demais pelo seu viaduto, que há quase dez anos o abrigava das chuvas de verão e de qualquer outra intempérie, para deixá-lo a revelia. O que iria fazer mesmo com o dinheiro era montar seu próprio negócio: comprar e revender “material” de primeira qualidade. Logo no primeiro carregamento, que estocou em um pequeno depósito ali perto, foi praticamente tudo o que tinha ganhado. O lucro viria com a revenda na zona sul, esperava.

No primeiro mês de trampo conseguiu ganhar alguns trocados, que gastou com coisas sem importância de relato. No segundo mês comprou mais, que negociou o pagamento em duas vezes: metade naquele momento e metade em quinze dias. Mas João não teve sorte, a polícia descobriu o seu depósito e levou todo o produto estocado. Ele, que nunca teve vocação pra economia, teria agora que negociar o pagamento da mercadoria perdida e poder continuar com o negócio. No encontro com os rapa dos quais comprava sentiu que estava numa furada. Eles deram uma semana para ele conseguir o pagamento. Era realmente encrenca. Descobriria isso com mais intensidade no fim de semana, quando os encontraria novamente. Ainda não tinha todo o dinheiro. Levaram o que conseguiu e lhe deram uma surra. Mais uma semana. Esse era o novo prazo para o aprendiz de traficante conseguir o restante da grana. Não conseguiu. Foi o seu erro.

No encontro do sábado de madrugada, João sentiu seu suor descer pelas costas quando levou o primeiro chute e caiu de joelhos. O estômago também teria sua dose de dor. O gosto do sangue veio à boca no momento em que ainda tentava dizer que, se dessem mais um prazo, arranjaria o dinheiro. Não teve tempo para falar, o soco no rosto lhe custou três dentes e, na seqüência, uma pancada na cabeça lhe tirou a consciência. Adormecia para não mais acordar. Pelo menos acabava ali o seu sofrimento.

A última imagem que veio à sua memória foi a da mãe e do pai - quando ainda era criança e queria ser médico - sentados numa sala apertada, sem piso e com goteiras no teto, a discutirem sobre educação. O pai dizia que aquilo era coisa de gente rica: “Homem precisa mesmo é de trabalho”, argumentava. Não sabia porque, mas naquele instante em que estava prestes a morrer, diante de pessoas que não sabiam de seu passado, de seus sonhos, de seus medos, ele sofreu e chorou em silencio algumas lágrimas já sem sentido. Levou dois tiros na cabeça, depois outros quatro no peito, dos quais um acertou o coração. Morreu descalço, sem roupa e sem dignidade. O pior mesmo era se soubesse que teria a foto estampada no jornal com a manchete: “traficante morto em acerto de contas”. Não era justo. Não com ele, João da Silva, que tudo o que fez na vida foi sonhar.

3 comentários:

Kellen Santos disse...

Milson! Cada vez mais ultrapassando suas habilidades literárias! Parabéns!
"Quantos João da Silva que um dia nós futuros jornalistas teremos de estampar nas capas dos jornais..."
Ainda tenho a esperança de que isso se torne menos frequente!

Milson Veloso disse...

Obrigado pelos elogios Kellen...
Sinto-me agraciado de ter você como leitora...
Te admiro demais...

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom