Um Mar de Escuridão

A vida, desafios e superações, dos deficientes visuais

Por Milson Veloso*

“Um dia me deitei para dormir e, na manhã seguinte, quando acordei já não enxergava mais nada”. Dessa forma, o relações públicas Ricardo Malta, 44 anos, explica como descobriu a escuridão da cegueira. Em 2003, após oito anos de luta contra um glaucoma, ele mergulhou definitivamente em um mar sem luz. Segundo Ricardo, era como se a noite jamais acabasse. “Bem cedinho, abri os olhos, mas parecia que o dia não tinha chegado.” Como já era de costume, ele ligou o rádio para ouvir músicas, uma de suas paixões, porém o programa havia terminado. “Achei estranho aquilo, então fui até a porta e a abri, na tentativa de ver alguma luz. Continuava tudo escuro. Como teste final eu resolvi acender a lâmpada. Não vi nada. Aí percebi que realmente estava cego”, revela.

Aprender a viver em um universo onde a imagem tem menos importância que o convencional é um desafio para quem perde a visão. O número de pessoas que vivem dessa forma, assim como o Ricardo, tem crescido. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a cegueira afeta aproximadamente 40 milhões de pessoas em todo o mundo e outras 125 milhões têm dificuldades para enxergar. E as expectativas para os próximos anos não são animadoras. A estimativa da OMS aponta que o número de cegos deve dobrar até o ano de 2020.

A cegueira pode se manifestar de várias formas, que são classificadas de acordo com o grau e o tipo de perda da visão, como a visão reduzida, a cegueira parcial (de um olho) ou o Daltonismo (dificuldade de percepção das cores). Contudo, o que preocupa as autoridades e os especialistas da área não é o tipo, mas a maneira como a doença se apresenta. Isso porquê, segundo a OMS, 75% dos casos são tratáveis ou evitáveis. Boa parte dessa porcentagem está relacionada a problemas como a catarata, que só no Brasil já fez cerca de 350 mil vítimas, sendo que 95% destes pacientes poderiam ter sido tratados.

Para o oftalmologista Dr. Ricardo Guimarães, diretor do Hospital de Olhos de Minas Gerais, o motivo de um número tão alto de afetados pela catarata acontece por que “a evolução da doença é lenta e a pessoa vai se acostumando com a perda progressiva da visão”, explica. O médico também afirma que essa situação poderia ser resolvida de forma simples, a começar com “a sensibilização de autoridades da saúde pública para que liberem recursos para o atendimento destes pacientes”.

Mas não são apenas números, são vidas. Vidas como a de Evandro Saito Freimann, 46 anos, professor de matemática para deficientes visuais. Há 16 anos ele não vê o sol, a lua, ou qualquer objeto. Há 16 anos Evandro precisou se redescobrir para continuar vivendo. “Só aceitei mesmo que iria perder a visão no dia em que o médico me disse: ‘não dá para fazer nada, não tem tratamento’”, esclarece. A partir daquele momento, o jovem traçou novas linhas para seguir. Não estava só. A convivência com outros deficientes e o apoio da família foi algo que lhe ajudou. “Não foi fácil. Eu tive que aprender muito, mas, quando falta a visão você aprende a usar os outros sentidos”, diz.

Da mesma forma como Evandro, Ricardo Malta também teve que superar diversos obstáculos. Segundo ele, um dos maiores problemas para os deficientes é encontrar um emprego, pois, “as pessoas não acreditam que o deficiente visual seja capaz de executar determinadas tarefas. Até contratam, mas apenas aqueles que têm deficiência parcial”. Entretanto, nem tudo são barreiras. A cegueira também tem a capacidade de transformar a vida de maneira positiva. “Depois que perdi a visão eu melhorei muito como ser humano”, revela Ricardo.

As mudanças ultrapassam o limite dos olhos de quem perde a visão. A auxiliar-administrativo Tércia Rodrigues Vieira, que trabalha há quase 5 anos no Centro de Capacitação para Deficientes da PUC-Minas, diz que a convivência com os deficientes visuais alterou de forma significativa seu comportamento. “Eu tenho aprendido com o carinho deles, a paciência em lidar com as coisas, mesmo as que aparentam ser difíceis”.

Barreiras, no meio do caminho

Tinha um buraco no meio do caminho. Esse é um fato do qual o professor Evandro Freimann não se esquece. Desde que ficou cego, em 1992, foram muitas as situações pelas quais passou, mas uma em especial lhe deixou marcas. “Certo dia caminhava pelas ruas de Belo Horizonte e, de repente, caí em um buraco”. O acidente aconteceu, segundo Evandro, devido a uma alteração no nivelamento da calçada que dava acesso à sua casa. O fato lhe rendeu, além do tombo e das dores, uma fratura no tornozelo.

Os empecilhos arquitetônicos são apenas algumas das muitas barreiras enfrentadas diariamente pelos deficientes visuais na capital mineira. Nesse sentido, ainda é possível citar a dificuldade para atravessar as ruas e utilizar o transporte público. Edwirges Maria da Silva, 34 anos, vendedora de bilhetes da loteria e cega desde os 16, reclama que o verdadeiro problema está na falta de solidariedade das pessoas. “Muitas vezes, elas trombam na gente, empurram e não estão nem aí. Quando alguém resolve ajudar, segura no braço com força ou com nojo, como se a doença fosse contagiosa”. Para o relações públicas Ricardo Malta, as pessoas são solidárias até demais. “O problema é que, a maioria delas, não sabe lidar com o deficiente visual”.

Questionada pela reportagem da Revista Ágora, a respeito dos obstáculos nos “caminhos dos cegos”, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, por meio da Secretaria de Políticas Urbanas, afirma que, apesar de a questão da acessibilidade ainda ser um assunto novo em discussão, “todas as obras de qualificação dos espaços urbanos contemplam as necessidades dos deficientes”. Ainda de acordo com a PBH, na região central da cidade já foram instaladas faixas livres em algumas ruas, pisos específicos para cegos nas calçadas, além de rampas e elevadores nos prédios públicos. Contudo, a instituição reconhece que a situação deve levar um bom tempo para ser resolvida completamente, pois “as ações precisam ser feitas gradativamente”.

Amor além da imagem

Já disse o escritor Luiz de Camões que o “amor é fogo que arde sem se ver”. Para a vendedora Edwirges da Silva, 34 anos, assim como o sentimento é algo que não se pode visualizar, também não é necessário enxergar para amar alguém. Ela namora há três anos outro deficiente visual e diz que o relacionamento é “normal”. “A gente beija, a gente ‘fica’, como qualquer pessoa”. Edwirges até faz planos para se casar e ter filhos. ”Não há nada que me impeça de fazer isso”, argumenta.

O professor Evandro Saito Freimann, 46 anos e cego há 16, garante que o amor entre duas pessoas cegas é mais do que normal, “é especial, pois a gente não se preocupa tanto com a imagem exterior. O que vale mesmo são os toques, a conversa, as carícias”, explica.

* Milson Veloso é graduado em Comunicação Social - Jornalismo, pelo Centro Universitário Newton Paiva. Este texto foi produzido no final de 2008 para a disciplina de Jornalismo Impresso II - Revista.

3 comentários:

Anônimo disse...

Você já é um jornalista.
Parabéns pelo texto.

bjos

Anônimo disse...

Caro Admilson,

Muito legal o seu texto.
Olha, a questão dos passeios de proteção, por onde anda os pedestes da cidade, às vezes nos deixa indignados pelo descaso da administração pública. Os passeios, em muitos pontos da cidade, se constituem em um perigo para pessoas de todas as idades, e uma verdadeira armadilha para os portadores de deficiência física, principalmente os de deficiência visual.
(...)
Abraço

Anônimo disse...

Parabéns meu irmão, vejo que vc está se empenhando para se tornar um grande jornalista. Parabéns pelo texto. Ficou excelente. Me orgulho cada vez mais de ser sua irmã.
Um abraço.