Existência


"A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias." Vinícius de Moraes

Caminhava lentamente como se não quisesse chegar em casa. Na verdade, não queria mesmo. Meu desejo era ficar a vida inteira a caminhar pelas estradas. Aquilo era fantástico. Poder pisar nos pedregulhos e deslizar os pés sobre a areia quente. Um misto de dor e prazer. Mas, valia a pena. A estrada me levava sempre onde eu queria: o lugar comum – qualquer destino. Compensava seguir descalço e sentir os grãos se esconderem entre os dedos. Fantasiar castelos e viajar nas nuvens de algodão. Tudo isso pertencia à grandeza da criança que ainda não saiu de mim.

O vento sempre soprava mais forte nas tardes de agosto. Era gostoso sentir os cabelos se bagunçarem e a poeira levantar. Uma confusão só, aquela briga da natureza. O vento, a poeira, as árvores. Pareciam até crianças a brincar, desafiando seus medos. Bonito de se ver, de se viver. Gostava de correr contra o vento, fechar os olhos e me imaginar a voar, como os pássaros lá do céu. O céu tão azul, que beleza. Amar, tão simples, uma sutileza. Porém, o que mais me comovia era mesmo a estrada. Porque, por ela iam e vinham sempre todas as pessoas. A cavalo, a pé, na carroça. A transitoriedade do caminho tem uma liberdade infinita, sem austeridade.

Sem nada pra pensar e o mundo inteiro pela frente. Dava até pra sentir o cheiro que vinha das folhas e flores de Araçá. Tão puro de existir. Quase melódica a composição que a ventania preparava entre os galhos. Escutava e não entendia. Mas o ouvir bastava para crer. No meio de toda a sinfonia daquele lugar, eu me sentia uma nota musical. Bom pertencer ao espetáculo que se formava e se reformulava em cada nova sensação. A emoção do espaço que não carece de preocupação com o tempo. Ah, o tempo. Este mais tarde se mostra e leva tudo. Só fica a lembrança e essa vontade de continuar na estrada, a espreita de quem passa.

Alquimia da infância que transforma em ouro todas as nossas vontades. Nada mais feliz que estar ao lado do mundo. Livre. Sem as amarras que a idade traz. A vida deveria acontecer permanentemente aos quatro, cinco, seis anos, no máximo. Essa arte impressa nos olhos como uma forma de enxergar as coisas. Inocência de se apaixonar. Nada que inclua preocupação e dor de cabeça. Seria melhor. Poder observar as labaredas que saem do chão quente, como se a terra estivesse a cozinhar com o verão. Correr bastante, suar e sentir calor para ter o prazer de beber um pouco d’água no chafariz. Molhar o rosto, a alma. Os sabores eram mais fortes e mais intensos. Época de escutar os pássaros e pular na cachoeira. De banhar no rio e na chuva. Época de caminhar na pequena trilha da praia. Só por caminhar. Os nossos passos nos levam pela vida. Essa alegria é triste, apesar de toda aquela felicidade...


Um comentário:

iILÓGICO disse...

Estrada, infância. Desejo de ir, vir. E continuar. A sorrir como a criança. Lindo cara!